Residência de Rui Pinheiro | Casa de Jantar

“O projeto Casa De Jantar surgiu do convite da OSSO para a realização de uma residência de criação em torno da fotografia. A proposta, desenvolvida na aldeia de São Gregório, tinha como premissa envolver a comunidade e trabalhar com fotografia a história deste território. O formato escolhido combina arquivo fotográfico familiar com fotografia de autor, concebendo uma nova ordem narrativa. Aqui, são apresentadas, de forma impressa, imagens dos anos 30 do século passado até aos dias de hoje. Este processo gerou inúmeras ligações entre espaços e pessoas, entre o tempo e a sua ausência. A fotografia presta um serviço fundamental à memória, uma vez que projeta a reminiscência de um passado do qual já poucas recordações guardávamos. «Não é por acaso que Warburg dizia que o seu Bilderatlas, um atlas de imagens a que deu o nome de deusa da memória, composto por 63 painéis, onde tinha fixado mais de 1000 imagens, era uma história de fantasmas para adultos. As imagens que Sebald integra nos seus livros não são ilustrações, são vestígios de um passado que regressa, formas materializadas de aparições fantasmáticas que se inserem num materialismo espectral mais vasto.» [1]

O modelo de relacionamento entre várias imagens produz uma história, uma mudança, que pode ser relacionada com os diversos pedaços de tempo, à semelhança do que somos: um conjunto fragmentado de emoções e conhecimento. Usamos as imagens para recriar novas ligações e discursos. A noção de tempo surge reforçada pelo recurso de uma imagem que torna o passado visível. Mantém-se a consciência temporal que o objeto fotográfico apresenta, mas também a sua génese representacional ligada à dimensão do passado. A análise da memória e do tempo, enquanto objeto efémero, a passagem entre o que foi e o que é. Todos transportamos o tempo que vivemos. Somos fundamentalmente tempo, uma duração. Somos mudança, memória, olhamos constantemente para o passado, mas sempre construindo a passagem contínua que é a vida. «Para as pessoas que foram fotografadas na época, às vezes somos lembrados que já estão mortas porque parecemos estar a olhar para um vale de tempo, onde quer que a deteriorização tenha acontecido ao filme. Mas, de certo modo, o momento em que foram fotografadas morreu no momento em que o obturador abriu e fechou. Todas as imagens são imagens-fantasma. Não existem imagens projetadas da vida em si mesmas.» [2]

Experimentamos a vida ao mesmo tempo que nos separamos dela. A fotografia tem o mérito de vencer o tempo, de o eternizar, de o tornar estático e sem mudança. A capacidade de reprodução que a imagem fotográfica confere à vida surge como a maior alavanca às debilidades da memória. Utilizamos a fotografia como uma tentativa de documentação do que passou: se não a guardamos, poderá nunca mais ser recuperada. Quando olhamos para uma imagem, testemunhamos algo que já não existe. O momento passou, o retratado já não está cá, a casa onde vivemos a nossa infância é outra. «As fotografias não mentem, mas também não contam a história inteira. São apenas um registo da passagem do tempo, a evidência exterior.» [3]

As fotografias de carácter pessoal são as que mais profundamente ligamos à memória, pois revemos um passado que tende a ser revivido num mecanismo pessoal que o transporta para o presente. A memória do tempo dedica-se à evocação do invisível, das relações e emoções longínquas. O seu objetivo é a imortalidade, é neutralizar a ausência através do reforço da memória fotográfica. As imagens fazem parte da nossa experiência do mundo, cada uma à sua maneira em função da sua história e dos seus condicionamentos. Casa De Jantar procura fixar, interromper o fluxo da vida, para preservar a memória de São Gregório.”
RUI PINHEIRO

1. António Guerreiro, em Toda a Memória do Mundo, Daniel Blaufuks, 2014, p. 41.
2. Bill Morrison, em Solar 10 anos, 2012, p. 42.
3. Paul Auster, em Fechar o Tempo, 2015, p. 17.


A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA
“Quando o Rui me pediu para escrever um texto para o Projeto Casa de Jantar, veio-me imediatamente à memória – e é de memória que tratamos – a pesquisa que João Paulo Serafim tem vindo a realizar há vários anos, cujo resultado (um de muitos resultados, pois este será sempre um trabalho em curso) apresentou em 2018, na Escola das Artes, no Porto – “A Invenção da Memória”. O trabalho de João Paulo Serafim, muito ligado à memória dos espaços museológicos de múltiplas instituições não deixa de contemplar o caráter individual e doméstico de muitos dos seus levantamentos de fotografias em “armazéns, sótãos, casas, espaços abandonados”. Aos conjuntos levantados ele chama-lhes “depósitos de memória” – expressão maravilhosamente conseguida, e como não me considero uma especialista vou, sem vergonha, apropriar-me dela. O Projeto Casa de Jantar, a meu ver, possui paralelismos com o trabalho mencionado, e considero que os encontramos também nos nossos percursos individuais. Não consigo deixar de me rever no projeto ao revisitar as fotografias registadas pelo meu pai com a sua Zeiss a partir dos anos 50 do século passado. Todos possuímos arquivos familiares de imagens que guardamos de forma egoísta ou que podemos partilhar generosamente como a população de S. Gregório o faz ao participar neste projeto. Esta recolha dos arquivos pessoais vai funcionar como “depósitos de memória”, contribuindo com as suas “pequenas histórias de imagens pessoais” para uma narrativa alargada de memória coletiva. Estes trechos de memória armazenados nos “álbuns de retratos” de família, muitas vezes adiados – a vida não permite pausas para recordar-, ou não, revistos frequentemente, formam no seu todo um arquivo identitário de uma comunidade. O fio condutor da narrativa atravessa gerações e territórios, viveres e morreres e materializa-se no papel que se deixa sensibilizar pela luz. Chamei a este texto Persistência da Memória, porque estes arquivos /depósitos permanecem além da existência física de cada um de nós.”
ANA MÂNTUA


Download do Jornal Casa de jantar.

Casa de Jantar na Revista Umbigo, por Ana Martins.


Título: Casa De Jantar
Autor: Rui Pinheiro
Edição: Jorge Almeida E Rui Pinheiro
Texto: Ana Mântua E Rui Pinheiro
Fotografia: Rui Pinheiro
Arquivo: Albertino Santos, Albertino Teodoro, Amália Oliveira, Assunção Ferreira, Carla Amaro, Cesaltina Serafim, Esperança Angelino Sousa, Fátima Rebelo, João Serafim, José Constantino E Marília Jacinto
Design Gráfico: Koiástudio
Edição: Osso – Associação Cultural
Impressão: Vasp Dps Tiragem 200 Exemplares
Local: Aldeia de São Gregório
Data: Setembro 2021