Luis Senra
Luis Senra é um saxofonista e free improviser micaelense, natural de Rabo de Peixe, que tem como foco explorar e desenvolver performances, a solo ou em parcerias, onde o foco principal é a liberdade criativa e a composição em tempo real, como meio de exploração musical e de conexão direta com o público.
Durante esta residência uma das práticas de Senra, entre outras, passa por explorar a relação e confronto do saxofone com as particularidades acústicas de diferentes espaços e edifícios existentes nas imediações dos estúdios da OSSO.
A IGREJA PAROQUIAL DE SÃO GREGÓRIO
A Igreja Paroquial de São Gregório mostrou-me o caminho. Um simples e bonito templo modernista, do século XX, com nave e presbitério num único volume, e que é parte de uma história – no mínimo – forte.
As populações da Fanadia e São Gregório sempre tiveram um historial de conflito e rivalidade. Para alterar este facto mandou construir-se um templo entre as duas aldeias com o objectivo de unir as suas gentes e acabar com as quezílias, templo este que em 1910 foi incendiado e destruído pelas chamas. Neste mesmo local foi construído o templo actual permanecendo ainda a história, como contou a Sra. Maria cujo o pai viu paralisado a paróquia em chamas.
Seria de esperar que o sentimento de uma união queimada reduzi-se a cinzas toda a possibilidade de criação, mas não foi assim. A acústica era tão cheio de vida – percorrendo e unindo espaço, corpo e mente – criando uma teia de sons longos e confortantes que paralisaram o corpo, invocaram o espírito e transportaram a alma para onde quis. O templo comigo cumpriu o seu papel, e uniu-me por inteiro.
Luis Senra | 23.02.20
O JARDIM DA ALDEIA
Um dos lugares mais belos de São Gregório é o jardim junto ao antigo poço. Habitado por belas àrvores e flores, com uma lindíssima vista para o vale e a possibilidade de assistir a um pôr do sol deslumbrante. Ali apenas se ouvem insectos , pássaros e os nossos pensamentos, o cenário perfeito para sentar e partilhar de forma plena.
Sem nunca tirar os olhos da vista, conversas cheias e companheirismo tornaram desconhecidos em conhecidos amigos. É este o poder de pessoas transparentes e com a capacidade de potencializar o melhor de nós e de criar os momentos mais marcantes e especiais.
Surpreendentemente fomos brindados com o aparecimento de um colibri, o mensageiro dos Deuses, que segundo os nativos americanos trazem alegria, amor, cura e luz divina a quem este decide voar perto. Trouxe com ele o absorver das suas maiores características: alegria, autenticidade, profundidade, leveza, adaptabilidade, persistência e infinidade; e o que parece ter sido a validação de tudo o que ali surgiu.
A música surgiu então meramente em segundo plano como se de uma banda sonora se tratasse. O cuidado em dar espaço à verdadeira música da natureza através de sons leves e espaçados, uma melodia leve e gentil, e o materializar de todos aqueles sentimentos e ligações com toda a envolvência natural e humana.
Tal como o colibri estávamos leves. Permitindo aos nossos espíritos a liberdade de vaguearem por aí seguindo a direção do som.
Luis Senra | 23.02.20
O JARDIM DA OSSO
É para mim o lugar mais inspirador da OSSO. Um lindo espaço verde bem marcado por duas enormes árvores de fruto que formam o que chamo ser o “portal da criativaidade”. É este “portal” que nos suga toda a atenção, faz baixar a guarda e o controlo, e obriga a ouvir e observar as mais pequenas coisas – como o vento a passar entre os ramos das àrvores, o ritual de colheita das abelhas e os monólogos e diálogos dos pássaros.
E foi com os pássaros que quis falar. Contar a minha história de busca pela tranquilidade e de, tal como eles, voar de forma tão leve através da minha essência munindo-me apenas do meu canto. Sem tensões e envolto em quietude a conversa revelou-se curta e em tom ameno, seguindo uma linha melódica que parecia sempre saber ir. Que ela me ensine a seguir com ela, sem controlos nem medos.
Luis Senra | 24.02.20
O PINHEIRO
Resiliência e esperança. Bem hirto e fixo por suas seguras raízes, todos os dias vê a luz ir-se embora mas ali continua de pé mostrando toda a sua majestosidade, força e perenidade. O Pinheiro foi o meu primeiro amigo em São Gregório. Tornou-se o meu companheiro de muitos pores de sol e segurou-me junto de si quando a deriva queria impor-se.
É que cada árvore tem uma personalidade própria e esta solitária mostrou a sua bem vincada. Assertiva, atravessando todas as estações sem temer intempéries, as alterações dos tempos e a crueldade dos humanos, e sendo um banco de armazenamento de histórias e memórias silenciosas de todos aqueles a quem um dia fez sombra, testemunho e companhia.
Passei a gostar de sentar-me junto a ele e tentar imaginar que memórias secretas guardará, a fantasiar completos guiões e cenários, o tom da sua voz e até melodias na minha cabeça. Esta, foi uma delas. Comigo levo todas as outras melodias interiores e ensinamentos. A ele, deixo mais esta íntima história que ficará para sempre guardada com ele e com a aldeia de São Gregório.
Luis Senra | 28.02.20
AS TRÊS FONTES
Aqui estão representadas a Fonte Padre António, a Fonte das Covas e os Lavadouros. Foram sítios onde, já no antigamente, as pessoas juntavam-se atraídas pela necessidade de água para os animais, para o lavar da roupa ou para o seu próprio consumo doméstico. Seria aqui que muitas das partilhas e do pensamento coletivo da aldeia se punha em prática, permitindo assim a comunhão das pessoas e uma responsabilidade colectiva acerca do bom funcionamento dos campos agrícolas, dos animais, da aldeia, da natureza. Hoje estão vazias de pessoas, mas a sua água continua a correr.
Foi esta água que a mim chamou, através do seu som, levando-me a tais fontes e seus tanques cheios de espelhos naturais e reflexos, expondo de forma tão detalhada padrões e repetições – da luz e de mim. Era um convite a deixar-me perder e a mergulhar no meu interior.
Aceitei o convite tornado a visita e permanência nos tanques o meu ritual matinal – ainda hoje ouvi um residente dizer: “ele está ali todos os dias” – estando todas as manhãs em confronto comigo e com aquilo que a água a cada dia me mostrava. A certa altura finalmente reconheci-me e consegui ver pelo meio de tantos padrões, repetições, ecos e reflexos hipnotizantes, conectando-me com a fluidez na água e o poder da sua transformação, purificação, força e limpeza. O que vi isso guardo para mim partilhando convosco este vídeo com um pouco de mim, da visão, dos meus sons interiores e do meu reconhecimento.
Luis Senra | 28.02.20
Data: 17.02.20 a 01.03.20
Local: Aldeia de São Gregório, Estúdios OSSO